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Psicoterapia: Até que a moda nos separe

E por muito doces que sejam, as ferramentas dos psicólogos não vêm num saco de plástico reciclado. Isso não é psicologia, isso é moda e usurpação das necessidades de quem sofre – por muito boa vontade e jeito que se tenha. E esperemos que essa moda não nos separe das pessoas que todos os dias usufruem de um processo terapêutico com profissionais reconhecidos para a prática da psicologia.


 

Num impasse entre esperar um comboio e acabar de beber um café de máquina em copo de papel que vou ter de colocar num lixo indiferenciado – à falta de se pensar a longo prazo na estratégia de capitalizar a atitude de reciclagem – refugiei-me num feed de uma rede social.


Nessa lista de notícias, estados de espírito e resumos da música que as pessoas de uma rede (virtual?) à qual pertenço ouviram mais durante o ano, vou encontrando cada vez mais menções ao quão bom e positivo é fazer um processo psicoterapêutico. Até aqui fico feliz! Parece que a pandemia e outros fatores vieram mesmo acordar a necessidade de colocar numa qualquer pirâmide de necessidades básicas, a necessidade de cuidarmos da saúde mental.


Não posso, no entanto, deixar de notar que entre alguns dos conteúdos que vou passando com o dedo polegar da mão direita à velocidade que o comboio da outra linha passa sem parar, existem momentos que fico confuso com (1) a necessidade de determinados conteúdos e (2) o valor dos mesmos.


Há qualquer coisa de transcendente na área da saúde mental. Note-se que é uma área jovem, com não mais de 150 anos, pelo menos essa é a data que se fundou o primeiro instituto de psicologia em Leipzig pela mão de Wundt, autor das primeiras teorias e impulsionador da necessidade de existir nesta disciplina um método, algo que lhe permitiria se impor enquanto ciência. No entanto, a psicologia – de forma lata – é bem mais velha enquanto quase-ciência. Observe-se a intrínseca ligação com a filosofia e a sua história com mais de 2500 anos e que ainda hoje gera inúmeras discussões e vontades de resolver problemas desde a ética à moral, a outras aplicações mais práticas para as quais não tenho conhecimento suficiente.


Talvez por ser uma ciência jovem, mas com um foco no ser humano, na sua parte mais obscura – i.e. a mente – e no desconhecimento de uma grande percentagem das causas e efeitos do nosso comportamento que a psicologia se tem vindo a conceber como uma das disciplinas mais interessantes dos tempos atuais.

Dizem os académicos da área da psicologia que estudam os processos cognitivos a nível fisiológico que sabemos mais do nosso universo (vulgo espaço) do que sabemos do nosso cérebro. É bem possível uma vez que não se conseguiu ainda pegar em meia dúzia de astronautas, colocar os mesmos numa nave do tamanho de uma ervilha e enviá-la diretamente até à glândula pituitária – que também é conhecida como hipófise – ou para outras zonas do nosso cérebro. Já há estudos que estão muito avançados, mas há tanto ainda para ser explorado.


Talvez essa seja a parte sexy que a psicologia traz ao ser humano nos dias que correm. Mostrar que é possível olhar para dentro em vez de olhar para fora.

Mas fico a pensar. Será este tipo de movimento uma espécie de moda? Será esse tipo de movimento algo que fica bem e se tem vindo a tornar um costume como o que aconteceu quando a noção de moda surgiu algures na época do renascimento? Não há nada de errado com isso. Antes pelo contrário. Enquanto profissional da área da psicologia, fico até bastante feliz com a ideia da disciplina ter uma força social como a que existe atualmente.

Não posso, contudo, deixar de pensar em algumas coisas.


Em primeiro lugar nas razões que levam algumas pessoas a começarem o seu processo terapêutico. Não tenho a certeza deste ponto – ressalvo-me – mas surge-me por vezes a pergunta, até que ponto começar um processo terapêutico porque está na moda é algo pertinente para a pessoa em si. Até que ponto a pessoa está mesmo disposta a olhar para dentro. Até que ponto as expectativas da pessoa não serão defraudadas. Dirão, mas é melhor experimentar mesmo por razões ambíguas (ou até erradas) do que não experimentar. Será?


Diria que caso isso aconteça, deveria ser responsabilidade de quem esteja a acompanhar o seu processo terapêutico, fazer a calibração do mesmo. Isto é, sentindo que o foco da pessoa não está totalmente no seu processo terapêutico, alertar a pessoa para tal, mostrar-lhe dificuldades, empatizando, mas nunca defraudando expectativas nem como se diz na gíria, colocando paninhos quentes sobre o assunto e dando uma palmada nas costas de conforto. No final de contas, o serviço da psicologia segue um método e trata-se de uma ciência realizada por profissionais com certificação para tal.


E isto leva-me a um segundo ponto que me parece bem mais perigoso e sensível de analisar. A capitalização que várias pessoas têm vindo a realizar com a área da saúde mental, quer seja descomplicando o processo terapêutico, ou até mesmo, usurpando-se da área em geral e das necessidades das pessoas em particular.

Talvez esta seja a razão pela qual vemos em algumas apresentações públicas afirmações como “acaba com a tua ansiedade em duas semanas” ou “transforma a tua vida em 5 passos”. Faz-me sempre lembrar alguém que tenha um cão e diga “consigo controlar este cão a 100% em 30 dias” – quem tiver cães vai perceber esta analogia e a arrogância da mesma. Afirmações como as anteriores esquecem o que de mais importante existe numa pessoa; o seu próprio livre-arbítrio. Isto é, a capacidade que a pessoa tem para explanar todos os seus problemas, escutar algumas considerações por exemplo de um/a psicólogo/a, e mesmo assim, na sessão seguinte, chegar e dizer, “fiz tudo ao contrário”. É mais do que normal. É perfeitamente expectável. E é – em alguns momentos – saudável que o faça, ainda que isso seja acompanhado de uma dor intensa por estar a falhar ao que acredita ser o comportamento que gostaria de ter.


Faço uma outra ressalva que se configura nos casos em que a pessoa está muito desorganizada e em que poderá beneficiar de uma atitude mais diretiva do profissional de psicologia. Dependerá do estilo e abordagem de cada profissional, e da forma como se ajusta a cada pessoa. No entanto, parece-me que algo não deverá ser comprometido, o facto de que o/a psicólogo/a que acompanha determinada pessoa, se coloque na posição de mostrar ferramentas enquant


o acompanha um caso, e não dar as soluções de uma charada que não é sua, mas sim da pessoa que usufrui de determinada ciência e método. Finalmente, sobre as usurpações da área da psicologia. Recentemente a Ordem dos Psicólogos Portugueses veio referir a existência de pelo menos 70 denúncias sobre pessoas que oferecem serviços associados a atos psicológicos para os quais não teriam competência para tal.


Parece que a moda, essa vilã que veste Chanel, está tão presente que alguns indivíduos que acreditam ter “jeito para pessoas” se apresentam como psicólogos/as ou melhor quasi-psicologos/as, terapeutas disto e daquilo, entre outras ideias.

Além destes quasi-psicólogos/as, vemos cada vez mais produtos a serem vendidos como substitutos do processo terapêutico – quem é que ainda não viu no seu feed as maravilhosas gomas anti-ansiedade. Devem ter um sabor bom, mas devem ficar por aí, diria. Com isto não devemos assumir que a consulta de psicologia e áreas associadas como a psiquiatria, são exclusivamente, as únicas possibilidades de podermos promover a saúde mental e o bem-estar. Há diversos estudos que afirmam outras potencialidades de outras áreas, como por exemplo o exercício físico, a nutrição, etc.


É justo até que - numa visão muito humanista - se possa conceber que no limite, cada um de nós deverá responsabilizar-se pelas decisões que toma. E se, porventura, me faz sentir muito bem ir a um profissional que se intitule qualquer coisa como “terapeuta de relações quânticas”, então quem são os psicólogos para dizerem que isso está errado. O que parece ser grave é ignorar alguns detalhes como por exemplo credenciais, defraudando expectativas na ânsia de resolver algo rapidamente.


 

O comboio está a chegar, ouço pelo altifalante da plataforma sem caixotes de reciclagem. E por isso, em jeito de conclusão, deixo para futuras reflexões duas notas. Uma para os beneficiários do serviço da psicologia e outra para os profissionais desta mesma área.



1) Ser cliente implica ter responsabilidade no processo, uma vez que o processo, embora partilhado com um profissional, é nosso – aqui falo também enquanto cliente – e por essa razão, é importante termos à vontade para dizer ao nosso psicólogo que determinada ferramenta não funciona, que a consideração feita está errada, ou que não percebemos o porquê de eventual associação.


Sentirmos que não temos liberdade e à vontade para o fazer é um primeiro passo para (i) ficarmos dependentes de um processo que não nos está a ajudar e (ii) fazer com que o psicólogo não perceba algo que lhe está a passar completamente ao lado – sim porque bolas de cristal não constam da lista de ferramentas dos profissionais desta área. Por vezes pode ser complicado ter esta conversa, mas não a ter será apenas um gastar de tempo e esforços que, mais cedo ou mais tarde podem acabar num drop out (i.e., deixar de ir às sessões sem razão aparente).


2) Ser psicólogo implica também responsabilizar-nos pelo processo. Não pelos objetivos terapêuticos, mas por criarmos as condições ideais para aquele/a cliente em concreto conseguir realizar o seu trabalho terapêutico. Implica termos noção dos nossos limites e não embarcar numa viagem sem rumo só porque está na moda por exemplo usar microdosing de psilocibina ou porque atualmente a ansiedade é um dos estados mais observados no nosso dia-a-dia. Até porque, não seria contraproducente para a sobrevivência do ser humano acabar com a ansiedade? Ser psicólogo/a implica estudar, ser reconhecido como tal, treinar muito, e isso é completamente diferente de ser “bom com pessoas”.


E por muito doces que sejam, as ferramentas dos psicólogos não vêm num saco de plástico reciclado. Isso não é psicologia, isso é moda e usurpação das necessidades de quem sofre – por muito boa vontade e jeito que se tenha. E esperemos que essa moda não nos separe das pessoas que já todos os dias usufruem de um processo terapêutico com profissionais reconhecidos para a prática da psicologia.




Diretor & Psicólogo Clínico e da Saúde RUMO





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