Migrar é viver: a importância da saúde mental na jornada de pessoas migrantes
- RUMO

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A saúde mental de imigrantes é uma questão política. O compromisso social com o cuidado psicológico dessas populações não é responsabilidade exclusiva do Estado, mas também da sociedade em sua totalidade, incluindo serviços e instituições comprometidos com práticas de acolhimento e cuidado.
Migrar é um fenômeno humano. Toda gente tem aquela prima, um tio, um irmão ou uma avó que emigrou. Isso quando não se é descendente direto de emigrantes. Se sentarmos ao pé de nossos pais, tios e avós, eles, de certeza, terão histórias para partilhar sobre um vizinho ou familiar que foi de “salto” para a França ou para o Reino Unido há décadas. Vão contar histórias de um parente que veio da Madeira para o continente ou de alguém que foi tentar a vida e começar de novo no Brasil. Vão, de certeza, contar as memórias de família e de amigos sobre os retornados.
A migração é uma realidade histórica e global. Seja qual for tua idade ou geração, saberás de histórias de alguém muito próximo que deixou de cá viver para fazer a vida alí ou acolá. Noutro país. Noutro continente. Da mesma forma, é muito provável que tenhamos tido contato com alguém imigrante. Uma pessoa que vem de outro país fala nossa língua ou aprende a falar, com ou sem sotaque. Que pensa e se comunica em 2, 3 ou 4 línguas diferentes. Pessoas que são colegas de trabalho, vizinhos. Alguém por quem nos apaixonamos, com quem nos relacionamos, com quem construímos amor, com quem partilhamos uma vida. Pessoa Imigrante. Pessoas que estão numa jornada humana de imigração. Pessoas que, tal como qualquer outro humano, são pessoas. Tem história, identidade, cultura. Pessoas que têm direitos.
Pessoas migrantes, imigrantes, emigrantes, expats e refugiados. Todas essas formas de nomear as condições e experiências de migração de uma pessoa apenas definem um fenômeno histórico na humanidade; no entanto, abro aqui um parêntese relativamente a essas condições.
O termo "migrante" é genérico para caracterizar pessoas que mudam de um lugar para outro, como cidade, estado, país ou continente. Imigrantes são quem se desloca de longa distância para viver perto de nós. O emigrante faz o oposto: sai da nossa proximidade para viver em um lugar distante. Expats são aqueles que escolhem morar perto de nós em busca de um emprego melhor, de acesso ao ensino superior ou de viver sua reforma. Já o refugiado vem em busca de viver. São pessoas que buscam casa no sentido de refúgio, uma vez que enfrentam perseguição, violência ou violações graves de direitos humanos que ameaçam a sua vida, segurança ou liberdade.

Com isso, acredito que o verbo correlato a 'migrar' será 'viver'.
Sejam por razões conveniência, econômicas, culturais ou de vida ou morte, a migração é um fenômeno humano contemplado na Carta dos Direitos Humanos de 1948. O artigo 13 do documento, que surge como resposta aos horrores da Segunda Guerra Mundial, estabelece as seguintes linhas como direitos fundamentais: a liberdade e a dignidade humanas, entre as quais o de que “toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e de regressar a este”. A carta também promulga que “toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado”.
Adicionalmente, a Convenção Internacional sobre os Direitos dos Trabalhadores Migrantes de 1990 reconhece os direitos fundamentais de todos os trabalhadores migrantes e de seus familiares, independentemente de seu status migratório.
No entanto, migrar nem sempre é garantido como direito incondicional, mesmo que esteja previsto na Carta dos Direitos Humanos. Portugal, como signatária do documento e como Estado democrático de direito, deve assegurar que migrantes, sejam expats ou refugiados, tenham dignidade, liberdade e inclusão. E inclusão aqui não é apenas sobre o que espera da lei ou o que está escrito em convenções. Inclusão como prática sistemática de abertura de portas, diálogo e encontro com estruturas sociais (escola, centros de saúde, oportunidades de trabalho, etc.) e com a sociedade em sua pluralidade. Inclusão como compromisso de humanização do fenômeno da migração.
Migrar é um direito que deve ser assegurado pelo Estado, tal qual o direito à saúde mental.
Nos últimos 10 anos, organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas e a Organização Mundial da Saúde têm apresentado argumentos de que a saúde física e a saúde mental devem ser consideradas direitos humanos universais. A fundamentação legal e moral desta premissa seria que a saúde mental é essencial para a dignidade, a autonomia e a participação na sociedade.
No caso de migração, encontramos justamente a importância da saúde mental na experiência de quem migra. Mesmo que ainda não haja consenso e diálogo contínuo, vários países já reconhecem a saúde mental como direito tanto nas Américas quanto na África, na Ásia e na Europa. Portugal não é diferente. O direito à saúde mental está salvaguardado no diploma Lei da Saúde Mental (Lei n.º 35/2023, de 21 de julho). Este dispositivo legal descreve a proteção do direito de aceder a serviços de saúde mental, bem como a autonomia na escolha do acesso e, principalmente, o direito ao acesso integral a cuidados, incluindo cuidados de saúde mental. Deste modo, não é muito difícil concluir que pessoas migrantes em Portugal não deveriam ter o direito universal de migrar, mas sim o de migrar com saúde mental.
E então, por que a saúde mental é tão importante na migração? Justamente por conta do fator de participação social. Pessoas migrantes lidam com sentimentos e emoções variados durante o processo migratório, muitas vezes motivados pela busca de pertencimento — sentir que faz parte, que está conectado com uma nova sociedade e realidade. Pertencer é um fator determinante na experiência de quem migra. Sentir-se incluído influencia diretamente as relações entre migrantes.
Nesse percurso, é comum sentir saudades de casa e das origens, e essa sensação de perda, somada à percepção de não pertencimento ao novo local, pode dificultar a adaptação e impactar negativamente a saúde mental. Esse impacto se intensifica quando migrantes se deparam com práticas racistas, xenofóbicas e discriminatórias. Fronteiras foram e continuam sendo historicamente usadas para definir o que é considerado aceitável em termos de gênero, sexualidade, etnicidade, nacionalidade, raça e outros marcadores sociais.
Assim, a dignidade e a autonomia de pessoas migrantes estão diretamente ligadas, e muitas vezes dependem, da possibilidade de preservar sua saúde mental, ou seja, de manter o bem-estar emocional e psicológico ao longo da jornada migratória.
A saúde mental de imigrantes é uma questão política. O compromisso social com o cuidado psicológico dessas populações não é responsabilidade exclusiva do Estado, mas também da sociedade em sua totalidade, incluindo serviços e instituições comprometidos com práticas de acolhimento e cuidado.
Um exemplo concreto desse compromisso é a parceria entre a RUMO e a OIM Portugal (Organização Internacional para as Migrações), que desenvolvem, em conjunto, um projeto voltado à oferta de serviços de saúde mental para pessoas em processo migratório. A iniciativa identifica riscos psicossociais e propõe intervenções que consideram a origem e os idiomas falados pelos usuários, reforçando a centralidade da saúde mental nas experiências migratórias. A colaboração entre RUMO e o Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração (ARVoRe) da OIM é um exemplo específico desse cuidado, ao reconhecer a importância da saúde mental na jornada de retorno.
Essa parceria permite a criação e o fortalecimento de recursos emocionais e vínculos sociais, possibilitando que migrantes que desejam retornar aos seus territórios de origem o façam com autonomia e dignidade. Permite que essas pessoas contem suas próprias histórias e sonhem com futuros em que se sintam pertencentes e participantes das sociedades em que se inserem. Também favorece a reconstrução de laços com amigos, familiares e, sobretudo, com sua autenticidade.
Assim, essa colaboração reafirma o compromisso ético com a saúde mental, humanizando o cuidado e reconhecendo, acima de tudo, o migrante como pessoa, o que sustenta práticas que tratam a migração e o bem-estar psíquico como deveres fundamentais, especialmente em países que se organizam sob princípios democráticos.
Delso Batista, PhD.
Doutor em Psicologia pela Nottingham Trent University (título concedido em julho de 2025) e mestre em Psicologia, Psicoterapia e Aconselhamento. É Membro Registrado da British Association for Counselling and Psychotherapy (MBACP, BACP Nº392444), Membro Graduado da British Psychological Society (BPS), Psicólogo EuroPsy (EFPA) e membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP Nº25359). Delso atua como psicoterapeuta e colabora com a plataforma online de psicologia e psicoterapia RUMO como Coordenador de Igualdade, Diversidade & Inclusão e com a Docklands Outreach, em Londres. Sua pesquisa e prática clínica concentram-se nas experiências LGBTQIA+, na imigração, na racialização e nas interseções entre psicologia e processos decoloniais.
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