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Estados, saúde mental e as "fronteiras" de ser-se Pessoa - Antropologia e Terapia Gestalt

Atualizado: 16 de jun. de 2020


"As fronteiras estão fechadas, até quando?"

Saúde mental além fronteiras

A reflexão que se segue, apesar de longa, pode ser fundamental para o momento presente. Iniciamos a mesma, pela análise do conceito e a caracterização das fronteiras, pela perspetiva da Antropologia, realizando uma analogia, com o conceito de "fronteira de contato", ideia base da Terapia Gestalt. Expomos, primeiramente, uma perspetiva "macro" sobre o impacto das fronteiras e dos Estados, na separação e segregação da Humanidade e como a própria é também delimitada, nas suas relações, por limites fronteiriços, que determinam como, enquanto "Pessoa Coletiva", somos no Mundo (connosco, com os outros e com o ambiente), no "nosso próprio estado" (emocional, cognitivo e comportamental).

 

Fronteiras: A perspetiva antropológica

Apesar de nos remeter para uma ideia de periferia, a fronteira tem sido, para políticos e jornalistas (maioritariamente), um dos centros de discussão desde o início da atual crise da COVID-19. Percebemos, através da comunicação social, que a fronteira foi o primeiro argumento dos Estados aquando do início da pandemia. Estando, portanto, fortemente associada a uma ideia de segurança das populações. Ao contrário do que se antecipou há três décadas, as fronteiras não perderam a sua importância. Têm, sim, vindo a ganhar um protagonismo cada vez maior e os Estados ainda detém nelas, e no seu controlo um dos mais importantes indicadores de soberania. As fronteiras não se tornaram, portanto, obsoletas e marginais à constituição da esfera pública; são cada vez mais o centro, uma vez que na sua relação com os Estados, manifestam a concentração de poder e a localização de autoridades não só físicas, como também virtuais.

O que são as fronteiras?

Respondendo à pergunta, as fronteiras funcionam como uma máquina experimental, uma vez que não conotam um "efeito" único e unificado. São polissémicas, isto é, apresentam-se de maneira diferente para pessoas diferentes.


Para alguns, a fronteira é uma fortaleza, para outros quase não existe.


Pensar nas fronteiras como polissémicas perturba o rigoroso binário de "dentro-fora", ou a ideia de que as fronteiras definem apenas o espaço ao redor dos territórios. As fronteiras são físicas e imaginadas, materiais e experienciais. São como um instrumento que opera seletivamente, como uma membrana assimétrica: para além de se estar a tornar como algo mais generalizado dentro da sociedade, pode ser uma barreira, uma porta aberta ou até escancarada.

Não são linhas marcadas nos mapas, mas práticas que vão sendo reproduzidas, toda a vez que decidimos quem pode, ou não, entrar/atravessar/permanecer.

Fronteiras: qual o limite de um território?

Classicamente imaginada como o limite de um território, a linha que demarca um país e o separa de outro. A fronteira, produz uma noção de dentro e de fora, de nacional e de estrangeiro e estabelece um sistema que controla o movimento daqueles que são considerados aceites, e daqueles que não são, em determinado território. Estas múltiplas tentativas de controlo e gestão da mobilidade sempre foram uma resposta à autonomia da mobilidade, uma vez que o movimento de pessoas ao redor do globo precedeu sempre qualquer ideia de fronteira.


Por exemplo e, como explica Achille Mbembe, nas sociedades africanas pré-coloniais, o movimento e a circulação, são as condições que definem as várias dimensões dessas sociedades: as tradições, as religiões, os sistemas matrimoniais e as trocas comerciais eram produtos do movimento. O movimento antecipava-se ao espaço e consequentemente à questão da territorialidade. Era o movimento que fabricava o espaço. Neste sentido, nas relações entre o espaço e o movimento, as fronteiras não existem, uma vez que esse limite bloqueia, por definição, a circulação de fluxo vital. A vida das pessoas estava no movimento e não necessariamente no espaço.


Com o estabelecimento de limites entre os vários territórios, a ideia de fronteira tem vindo a naturalizar-se e a mobilidade humana passou a ser percecionada como migração, uma vez que envolve a passagem (ou a transgressão) de uma fronteira estabelecida por um determinado Estado. Se a ideia de fronteira não existisse, também não existiria uma ideia de migração, apenas de mobilidade. A fronteira é então produtiva na medida em que cria estatutos e categorias de pessoas, como por exemplo, o trabalhador migrante, o trabalhador qualificado, o investidor, o requerente de asilo, o refugiado, o turista, entre outros. Produz, também, não-estatutos, como o de migrante ilegal, quando o seu movimento é percecionado como problemático ou quando este não atende às necessidades laborais de determinado país, por exemplo.


É o regime de fronteira que produz a ilegalidade das pessoas. Não são as pessoas que são ilegais. Ninguém é ilegal.

Neste sentido e imaginando que a referência ao Estado como limitado e/ou territorializado fosse inexistente, a noção de migração ilegal deixaria de ser significativa:

como seria a migração ilegal se não houvesse fronteiras como tal, para atravessar? Existiria?



Saúde mental e as fronteiras do (nosso) contato

A Terapia Gestalt, também conhecida como terapia do contato, tem como finalidade conhecer e trabalhar a consciência da pessoa, ampliando a mesma, segundo uma perspetiva fenomenológica, holística e integrativa da sua própria experiência. É, pelo contato, que me percebo como existo. A mudança, a evolução, e o desenvolvimento, maturação, é precedente de um contato (i.e., a troca de experiências, de sentimentos, de relação, com o outro, consigo mesmo e com o mundo).


O contato ocorre em três níveis de ação: emocional, cognitivo e comportamental. A recusa ou o evitamento de contato também ocorre nestes mesmos três níveis. O "limite", em que a pessoa e o meio se tocam, é chamado de limite de contato (ou fronteira de contato) - um processo contínuo de reciprocidade em que a pessoa e o mundo se transformam. Enquanto organismos, as pessoas comunicam com o ambiente, através de sensações físicas, sentimentos, pensamentos ou ideias abstratas. Entramos e estamos em contato sempre. Seja apenas com o pensamento, como quando ruminamos certos pensamentos, sobre o que já tanto sabemos, até à exaustão, ou sobre que “devemos” ou não fazer.


De forma muito simples, para a Gestalt, a fronteira de contato, é o estudo da forma como a pessoa funciona no seu contexto social - desde as sensações, pensamentos, emoções, sentimentos, acções, reações ou comportamentos. E, na terapia, trabalhamos com o que é "aqui e agora" presente. Pela forma como nos ajustamos (enquanto organismo) ao (nosso) meio. Analogamente, como nas ideias primeiro partilhadas, também este tipo de fronteira, a fronteira de contato, é um centro de experiência, de troca, um lugar de encontro das diferenças, onde a interação ocorre. Seja na experiência interna, connosco próprios, seja em relação com as diferenças dos outros, no mundo. Seja em relação às disparidades, injustiças ou problemas de “outros mundos”, outras nações, comunidades e culturas.



As "Fronteiras" de se ser Pessoa






O “self” pode ser considerado como uma estrutura dinâmica e processual, com diferentes funções. Igualmente, como parte da construção da personalidade, mobiliza-se para a “eventual” necessidade/prioridade/objetivo. Neste movimento, o “self” configura-se a “Pessoa” (eu/tu/outro) pelo contexto onde se encontra existindo, não por si próprio, mas no contato com os outros.


Eu existo em contato contigo e em contato com o que me rodeia. Tu existes comigo, em espelho do que se perceciona como realidade comum, mesmo na sua relatividade.


Os limites das relações podem-se determinar pelo "espaço" que se (co)cria, que “existe”, entre o que “eu” sou, como "tu" és, como o Mundo é (ou está). A forma como “eu” contato, para além de ser quem sou, é o que ressoa no outro, é como me apresento para o outro. Em real contato podemos identificar e compreender a intencionalidade, a intenção, que tantas vezes determinam comportamentos e atitudes.


Estar em contato é estar em relação, mesmo que seja uma “não relação”. O "não saber" é, por si só, já saber algo. Por isso, na prática, certas formas de estar em contato podem configurar contextos e situações não equilibradas ou equalitárias, que contribuem para relações não funcionais, tóxicas ou pouco ajustadas às verdadeiras intenções, necessidades ou prioridades da pessoa, de forma autoconsciente ou, outras vezes, nem tanto.


Quantas são as vezes que "não damos conta"? Que não nos apercebemos do que fizemos/fazemos? Como, habitualmente, a (nossa) atenção é dissipada em tantas distrações? Podemos não saber como queremos, ou mesmo o que desejamos. Podemos nem saber o que realmente sentimos, ou como "o" sentimos. Mas, digo-te, está tudo bem... desde que te "dês conta" exatamente disso.


Por vezes, "esse espaço" pode ser sombrio ou alienado, mas sempre vital e essencial para o amadurecimento e desenvolvimento da própria pessoa. A integração dessas tantas possibilidades que somos, das nossas inerentes diferenças, tantas vezes projetadas no outro, é como uma "viagem" entre Estados, uma dança entre vários pólos e centros de sensação, emoção e sentimentos, que vamos experienciado, ao longo das nossas vivências, na relação connosco próprios e com o que nos rodeia - e que é muito.


Por vezes, podemos “sentir” ou “mesmo saber” sobre algo ou alguém. É visceral. Neste espelho de amor-ódio (ou qualquer outro “conflito” dual), podemos compreender como (co)existimos – somos seres relacionais – somos com o “outro/mundo”.

Viver, como uma experiência contínua de tentativas e erros, é estar em contato. O contato é respirar, é alimentar, é acolher, é reproduzir, é partilhar. É inter-relação. Desde a homeostase até às diferentes culturas, todas as funções que coexistem, implicam contato. E, esse contato implica, no campo organismo-ambiente, uma fronteira. O contato é, por ele próprio, guiado pela capacidade de autorregulação do (nosso próprio) organismo, pela perceção da realidade, muitas vezes relativa.


Os limites, delimitam o que “somos”, “como é”, “como estás” ou “como é o mundo”.


Pelo movimento (i.e., qualquer tarefa/atividade que, idealmente, explore e integre corpo-mente-alma), regulamos o "pensar, sentir, fazer e comunicar", de "sermos" Humanos, entre as tantas diferentes experiências, histórias anteriores, velhas estruturas ou distintas realidades. As fronteiras de contato ajustadas permitem que as relações sejam permeáveis e flexíveis, podendo a pessoa realizar trocas satisfatórias com o ambiente, promovendo mais liberdade e a autonomia para escolher e não assimiliar ou integrar o que não lhe serve. A fronteira do que é “meu”, no contato pele a pele, comigo, e com os outros, diferencia mundos e fundos.


Repara, quando algo se encontra estagnado ou cristalizado, seja uma crença, um hábito, uma atitude ou comportamento... Como te sentes? O que fazes? Como fazes? Quando parece que não existe solução, como te podes posicionar, para observar outras perspetivas sobre o mesmo problema?


Reaprende a respirar. Não reajas. Respira lenta e profundamente.

Reflete. Age.


Movimenta-te para a ação. Por exemplo, perante um um bloqueio de escrita, a realização de uma outra atividade, que seja satisfatória, de relaxamento, ociosa ou considerada "inútil", pode facilitar e ajudar a “mastigar”, a “digerir” e a processar aquilo que é difícil ou preocupante, potenciando novas ideias e soluções para o problema ou desafio. Agir, com intenção sobre determinado problema, mesmo que não seja da forma "mais direta" ou esperada, pode dissolver a apatia, presentificada, tantas vezes, quando não estamos no "aqui e agora", neste momento presente.


Aquilo que descobrimos e reconhecemos que “não somos” aproxima-nos de como realmente estamos e do que realmente queremos ser.



"Ser além fronteiras": um exercício prático sobre a(s) fronteira(s) do contato


"Nós", Seres Humanos, enquanto sociedade, Estados, Comunidades, Grupos, somos um continuum de experiência(s) e existência(s). A Humanidade é como uma pessoa coletiva ou, como uma enorme orquestra, composta por tantos diferentes instrumentos, num espaço comum (Planeta Terra, Via Láctea, Cosmos).


1. Imagina-te agora como um qualquer instrumento musical:

Qual serias? Como seria o teu som? O ruído? O ritmo?


2. Imagina agora outro instrumento que possa surgir:

Como é a sua forma? O seu som? O que acontece entre vocês?


… e assim poderia continuar.


Esta metáfora, pode ser continuamente explorada, sem certos ou errados. Permite-te que a “música” flua e descobre, ao longo da mesma, como cada “instrumento” (pessoa) se pode afinar e ajustar (-se, ao(s) outro(s)). Para além dos instrumentos, que se possam juntar, coexiste também um "som de fundo". Este, que nos sustenta a todos, e apesar de estar, muitas vezes, mesmo lá no fundo, não perde a sua importância. E, muitas vezes, o som é gritante. É dorido. Esse "suposto ruído", que tanto incomoda certos umbigos, é maioritariamente um bem-maior. Quando, se configura presente, pode ser sempre uma oportunidade de olhar e reconhecer a sua importância e impacto. Entre “nós”, existirá sempre uma troca, existe dar e receber, existe comunicar, ceder e negociar: O que posso aprender contigo? Em que podemos colaborar? O que podemos (des)construir em conjunto?


Existem muitas formas de sentir, ser e estar. O que te diz o Mundo? A tua comunidade? Diminui o teu próprio ruído. Como te escutas? E como também escutas o outro?


Pode acontecer que, nesse olhar e estado interno, identifiques que a diversidade, desta grande família humana é, exatamente pelas tantas diferenças, variáveis díspares e relativas, o que nos torna também tão únicos e semelhantes, mesmo dentro das nossas próprias fronteiras. Que possamos experienciar, dialogar, escutar, explorar, falhar. E, pelos acertos e erros, experimentar de novo.

O que podes fazer hoje para a nossa melhor Pessoa Coletiva?





Autoras:

Carolina Oliveira Borges (Psicóloga Clínica e Cofounder RUMO)



 

Referências Bibliográficas


Balibar, Étienne. 2004. We, the people of Europe? Reflections on Transnational Citizenship. Princenton University Press.

De Genova, Nicholas (ed.). 2017. The Borders of “Europe”: Autonomy of Migration, Tactics of Bordering. Duke University Press.


Ginger, S.; Ginger A. Gestalt uma terapia do contato. São Paulo: Summus, 1995.

Hall, Alexandra. 2012. Border Watch – Cultures of Immigration, detention and control. University of New York.


M. F. Amante & I. Rodrigues (2020): Mobility regimes and the crisis: the changing face of Chinese migration due to the Portuguese golden visa policy, Journal of Ethnic and Migration Studies, DOI: 10.1080/1369183X.2020.1752640


Mbembe, Achille. 2017. Políticas da Inimizade. Antigona: Lisboa 


Perls, F. S. Gestalt-terapia explicada. São Paulo: Summus, 1977


Woldt, A. & Toman S. (Ed.) Gestalt Therapy. History, Theory and Practice. Sage Publications. 2005


Yontef, g. M.0. Processo, diálogo e awareness. São paulo: summus, 1998.



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